Medida Provisória 1.182/2023 e a proteção das bets no âmbito marcário
Nos últimos anos, um fenômeno sem precedentes passou a fazer parte e a se relacionar intrinsecamente com o mercado futebolístico internacional, criando uma espécie de relação simbiótica entre esses dois mundos e gerando uma movimentação financeira, na casa de bilhões de dólares em patrocínios, propagandas e rendimentos: as casas de apostas esportivas, conhecidas como bets.
Desde clubes europeus até os próprios times de futebol brasileiros, atualmente, quase todos têm como ponto comum o patrocínio, em algum grau, de casas de apostas. Hoje em dia, é impossível assistir a um jogo de futebol sem se deparar com alguma referência a essas empresas, seja como patrocinadoras de equipes e competições, ou em propagandas televisivas.
A relação desse modelo de negócios com o esporte direciona o consumidor a se engajar naquela própria competição, como uma extensão do entretenimento principal, por exemplo, ao assistir um jogo do Botafogo, o espectador pode ser influenciado a apostar na PariMatch, a casa de apostas patrocinadora master do time.
Portanto, não é à toa que a combinação casas de apostas e competições esportivas se tornou um negócio extremamente lucrativo nos últimos anos.
Sob o ponto de vista jurídico, cabe lembrar que a exploração de apostas e jogos de azar era permitida no Brasil até 1946 e, desde então, não existia base legal regulamentadora do funcionamento das empresas desse ramo. Apesar de a Lei 13.756/2018 ter criado a modalidade lotérica denominada aposta de quota fixa (termo técnico para as apostas esportivas), a regulamentação desse setor ainda carecia de normas específicas, de modo que as casas de apostas vinham atuando no país por meio de empresas sediadas em território estrangeiro, embora oferecendo produtos e serviços direcionados quase que exclusivamente a consumidores brasileiros.
A mobilização causada por esse setor deu ensejo à recente publicação da Medida Provisória (MP) 1.182/2023, que estabelece as regras para atuação das bets como, por exemplo, a idade mínima de 18 anos para os apostadores, a forma de tributação dos agentes operadores de apostas e de autorização destes para o uso da imagem, nome ou apelido desportivo e demais direitos de propriedade intelectual dos atletas e das denominações, marcas, emblemas, hinos e símbolos das organizações esportivas.
A MP já está em vigor, mas precisará ser analisada e aprovada pelo Congresso Nacional para que seja convertida em lei – caso isso não ocorra, a MP perderá sua eficácia e será arquivada.
Embora algumas regras trazidas pela MP ainda precisem de futura regulamentação – como, por exemplo, o pedido de outorga para exploração da atividade de apostas ao Ministério da Fazenda –, pode-se dizer que, finalmente, o Brasil está lançando luz sobre um segmento que, até então, vivia praticamente uma situação de anomia.
Nesse cenário, surge um importante questionamento: como se dá a proteção das marcas dessas bets, tão importantes para a credibilidade de seus negócios, já que a licitude da atividade ainda está em uma zona cinzenta?
A Lei 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial) estabelece em seu artigo 128, §1º que, no Brasil, apenas podem ser registradas marcas que identifiquem e protejam atividades exercidas de forma lícita no país.
A despeito disso, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), autarquia federal responsável pelo registro de marcas, por vezes já permitiu que marcas que protegiam, em suas especificações, “jogos de azar” fossem registradas; porém, na maioria dos casos, mesmo após a entrada em vigor da Lei 13.756/2018, o exame de pedidos de registro de marcas que buscavam especificar “jogos de azar” e “apostas” foi interrompido para que os depositantes retirassem tais itens das especificações por serem considerados ilícitos. Nesses casos, a penalidade prevista em caso de manutenção dos itens ilegais nas especificações é o arquivamento definitivo do pedido de registro de marca.
Ao considerarmos o Protocolo de Madri, que permite que a proteção de um registro internacional seja estendida ao Brasil, a impossibilidade de “jogos de azar” e “apostas” serem protegidos por marcas se torna problemática ao criar um cenário em que muitas bets podem ter suas marcas registradas, com suas especificações completas, em alguns países e, no Brasil, terem que restringir a sua proteção marcária, ainda que possuam forte atuação no país, inclusive com altos investimentos em propaganda.
De fato, existe um descompasso: as bets podem explorar e promover apostas esportivas online, tendo foco exclusivo em consumidores brasileiros, mas não podem obter o registro de seus sinais distintivos para suas atividades-fim no país, sob a justificativa de que essas atividades, que movimentam bilhões em faturamento, são ilícitas.
Assim, o que se espera com a efetiva regulamentação das apostas esportivas no Brasil é que a atuação das bets – já presentes na maioria dos clubes da primeira e segunda divisões do futebol e nas principais competições esportivas do país –, se concretize, também, sob a forma de registros de marca.
É importante destacar que a MP trata apenas das apostas esportivas. Ou seja, caso seja convertida em lei sem emendas, a proteção marcária ficará restrita às referidas apostas.
Contudo, a expectativa é que o frisson político causado pelas bets ocasione a votação do Projeto de Lei 442/1991, que foi aprovado na Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022, após mais de 30 anos de tramitação e, agora, aguarda o posicionamento do Senado Federal. O referido PL busca a legalização de outras modalidades de jogos de azar, como bingos, cassinos e jogo do bicho e, caso finalmente aprovado e sancionado, também possibilitará o registro de marcas que visam proteger tais atividades pelo INPI.
Portanto, a Medida Provisória 1.182/2023, por mais que ainda não tenha sido convertida em lei, representa um marco importantíssimo para o segmento de apostas e, como consequência, também gera alguns questionamentos que gravitam ao redor dessa temática: quando o INPI irá permitir o registro das marcas identificadoras das bets para suas atividades-fim de apostas esportivas? Teremos regulamentação voltada para atividades de cassinos, bingos e outros jogos de azar? A regulamentação representará um avanço, estagnação ou decadência desse setor?
Essas e muitas outras perguntas somente o tempo poderá responder. Enquanto isso, seguiremos acompanhando o desenrolar do que é, sem dúvidas, apenas a ponta de um iceberg de possibilidades trazidas pelo mercado de apostas e, consequentemente, para a proteção dos ativos de propriedade industrial dessas empresas no Brasil.