Expressões de Uso Comum na Lei da Propriedade Industrial: Desafios e Limitações

31 dez 1969

A recente decisão judicial que anulou o registro da marca “Língua de Gato” trouxe à tona questões cruciais sobre o uso de expressões comuns e a importância da distintividade na proteção de marcas, servindo como um alerta para empresas que buscam proteger seus ativos de Propriedade Intelectual.

Nossos advogados Pedro Matheus e João Cláudio Henrichs fazem uma análise sobre o impacto das mutações de expressões de uso comum utilizadas como marca.

No artigo publicado hoje, eles abordam o fenômeno da degenerescência de marca, uma mutação que faz com que a marca perca a distintividade que originalmente possuía, além do conceito de secondary meaning, onde sinais inicialmente comuns ganham distintividade ao longo do tempo.

Leia abaixo o artigo completo!

 

Expressões de Uso Comum e a Lei da Propriedade Industrial 

Expressões de “uso comum”, como o nome indica, são aquelas costumeiramente usadas pelo povo, e que fazem, portanto, parte do seu patrimônio linguístico. 

A princípio, não há vedação ao registro de expressões de uso comum pertencentes ao vocabulário, como marcas. Contudo, o problema surge quando se pretende registrar uma expressão de uso comum para identificar produtos ou serviços a ela relacionados, algo que é vedado pelo Art. 124, inciso VI da Lei da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96 – LPI), que dispõe não ser registrável sinal “de caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo, quando tiver relação com o produto ou serviço a distinguir, ou aquele empregado comumente para designar uma característica do produto ou serviço, quanto à natureza, nacionalidade, peso, valor, qualidade e época de produção ou de prestação do serviço, salvo quando revestidos de suficiente forma distintiva”. 

A ideia da vedação, portanto, é evitar que um comerciante ou prestador de serviços se apodere de palavra ou expressão comumente utilizada para se referir àquele próprio produto ou serviço, por exemplo, embaraçando o seu uso por concorrentes. 

Recentemente, foi proferida sentença envolvendo exatamente esse tema (registro de marca composta por expressão de uso comum) em relação à marca “língua de gato”, e o fundamento da decisão judicial de nulidade foi justamente o reconhecimento judicial de que tal expressão era amplamente utilizada por concorrentes para se referir a um tipo de produto. 

Com a sentença, a exclusividade da marca “língua de gato” para identificar chocolates e outros produtos congêneres foi retirada, permitindo que outras chocolatarias, incluindo a Cacau Show, autora da ação, utilizem essa expressão para descrever e identificar produtos similares. 

 

Caso Recente de Anulação de Concessão de Registro Marcário por ser composto por Expressão de Uso Comum 

A decisão acima mencionada repercutiu no campo da Propriedade Intelectual. A juíza titular da 12ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Laura Bastos Carvalho, proferiu a referida sentença em uma ação movida pela Cacau Show, anulando o registro nominativo da marca “língua de gato”, anteriormente concedido à Kopenhagen, na classe 30, para identificar diversos produtos, entre eles chocolates. 

Na fundamentação da sentença, a juíza considerou que a expressão “língua de gato” é de uso comum e possui um notório caráter descritivo quando aplicada à identificação de um formato específico de chocolate. Segundo a magistrada, diversos concorrentes já utilizavam essa expressão para descrever chocolates em formato oblongo e achatado antes mesmo de 2016, ano em que o registro da marca foi concedido à Kopenhagen.1 

Assim, fica claro que o registro de expressão de “uso comum” como marca não é algo pouco frequente, e pode gerar problemas para o seu titular mesmo após anos do registro. 

No caso narrado, o Judiciário entendeu que a expressão “língua de gato” já era de uso comum, inclusive mencionando o uso da expressão para se referir a chocolates de formato oblongo e achatado desde o século XIX, ressaltando que não teria sido a titular do registro a “inventar” o formato do doce e a expressão que o denomina. 

O que ocorre, contudo, quando há uma “mutação”? Ou seja, quando uma determinada expressão usada como marca se torna comum ao longo do tempo ou, ao contrário, quando uma expressão comum se torna distintiva? 

 

Discussões sobre a Degenerescência de Marca

A primeira pergunta acima, tirada a partir da decisão do “caso língua de gato”, desencadeia discussões relevantes sobre o fenômeno da degenerescência de marca. Este fenômeno, também conhecido como degeneração ou vulgarização, é uma mutação que faz com que a marca perca a distintividade que originalmente possuía.  

Ocorre quando uma marca passa a corresponder ao nome, figura ou forma comum pela qual o produto ou serviço é genericamente designado por consumidores e concorrentes. A degenerescência compromete a proteção da marca, já que a legislação brasileira proíbe a proteção de expressões comuns e genéricas.2 

O Brasil possui diversos casos típicos de degenerescência de marca. Como exemplo, temos a marca “DANONE”, que hoje é vulgarmente utilizada a fim de designar qualquer tipo de iogurte, além de exemplos ainda mais notórios, como o da marca “GILLETTE”, usada pela população para se referir indiscriminadamente a lâminas de barbear. 

Se perguntarmos aos titulares das referidas marcas o quão benéfico é que seu consumidor possa associar sua marca a qualquer outro produto concorrente, podendo adquiri-lo ou não, afinal, “é tudo DANONE/GILLETTE”, possivelmente não receberíamos uma resposta positiva quanto a isso, já que tal uso acaba por fragilizar a marca, afinal, o consumidor não vai associar aquela marca com o produto do seu fabricante, mas também com produtos de terceiros. Assim, embora possa parecer positivo, em um primeiro momento, o fenômeno da degenerescência pode acarretar infortúnios a uma marca.  

O principal atributo de uma marca é justamente a sua distintividade3, fator determinante para diferenciá-la das demais aos olhos dos consumidores, o que não se tem quando a marca está “vulgarizada”, já que ela acaba perdendo uma característica própria desta espécie de direito de Propriedade Intelectual, a distintividade.  

 

Secondary Meaning e Proteção de Marcas no Brasil 

Como dito anteriormente, a distintividade é atributo essencial das marcas, e quando uma marca perde essa distintividade, levando em consideração que a percepção que os consumidores têm dela pode se alterar com o tempo, nos deparamos com o fenômeno a degenerescência. 

A Lei da Propriedade Industrial dispõe em seu artigo 122, que são registráveis como marca apenas os sinais que sejam distintivos, visualmente perceptíveis e não estejam compreendidos nas proibições legais. 

Diferentemente de outros países, no Brasil, é responsabilidade do Judiciário analisar e decidir sobre o reconhecimento do chamado secondary meaning (segunda significação/significado secundário). Esse conceito refere-se à capacidade de um sinal, inicialmente carente de distintividade ou com distintividade frágil, adquirir distintividade por meio de um processo de transformação ao longo do tempo. 

Esse processo ocorre quando uma palavra originalmente comum ou vulgar é deslocada de seu sentido semântico original, ganhando um novo significado.4 Após essa transformação, o sinal torna-se registrável, mesmo que anteriormente não o fosse, por vedação do artigo 124, inciso VI da LPI.  

Como exemplo, podemos citar a “Casa do Pão de Queijo”, expressão de uso comum, mas que em virtude do longo período de uso e dos méritos de sua titular, se tornou praticamente indissociável de um determinado fornecedor de produtos e serviços, tornando-a, assim, apta a ser registrável.  

Assim, ao contrário da degenerescência, o secondary meaning contempla que vocábulos que originalmente eram utilizados como expressões comuns possam ser associados pelo consumidor a um produto ou serviço específico, ocorrendo o “fenômeno vinculativo pela associação”5, tornando tal expressão uma marca forte o suficiente para superar o caráter vulgar ou comum anterior da expressão e que, apesar desse caráter, será associada e reconhecida pelo consumidor. No caso judicial já mencionado neste texto, a titular da marca nominativa “língua de gato” buscou esse reconhecimento, todavia, a decisão de primeira instância não acolheu os argumentos da autora nesse sentido. 

 

Conclusão e Implicações  

A decisão da 12ª Vara Federal do Rio de Janeiro de anular o registro da marca “língua de gato” destaca a importância da distintividade na proteção de marcas no Brasil. A juíza Laura Bastos Carvalho fundamentou a sentença no uso comum e descritivo da expressão, enfatizando que marcas genéricas não são passíveis de registro segundo a Lei da Propriedade Industrial, o que é correto. 

Embora a decisão sobre a expressão “língua de gato” possa ser objeto de recurso por ambas as partes, ela serve como um alerta para empresas que buscam proteger seus ativos de Propriedade Intelectual. 

O alerta diz respeito à necessidade de o titular, ao escolher sua marca, entender se tal sinal é ou não uma expressão de uso comum, a fim de evitar que sua marca, caso concedida, venha a ser anulada após anos de uso e investimentos, retirando do titular uma exclusividade que ele pensava ter.  

O alerta, contudo, não se resume apenas ao momento do registro, e a distintividade da marca não deve ser avaliada estaticamente, pois a linguagem muda e, com ela, as marcas podem perder ou adquirir distintividade com base na degenerescência e no secondary meaning. 

Entender – e identificar – essas mudanças é essencial para que o titular de uma marca possa enfrentar o processo de degenerescência ou beneficiar-se do secondary meaning.